20 anos depois, o câmbio ficou pronto!

8 jan

O uso do câmbio CVT, de Continuously Variable Transmission ou transmissão continuamente variável, ainda é relativa novidade para a maioria dos motoristas – não apenas os brasileiros. Veículos equipados com esse tipo de câmbio começam, só agora, a se popularizar. Entretanto o sonho de conseguir transmitir a potência do motor às rodas sem engrenagens, de forma contínua – o que torna o veículo mais silencioso, econômico e maleável – é antiga. Há registros até mesmo de que Leonardo da Vinci fez rascunho a respeito, em 1490.

Mas as CVTs nunca chegavam de fato às linhas de produção de veículos por sérias limitações de uso: elas utilizam polias ligadas por uma correia em V, que não suportam torque minimamente elevado. O primeiro veículo equipado com caixa CVT foi o holandês DAF 600, em 1958, de 600 cm3 de cilindrada. Outras tentativas, como da Subaru, seguiram a mesma linha, com uso da CVT em motores pequenos.

Para usar o CVT em motores – e veí­culos – maiores a solução era aplicar uma CVT sem correia, a toroidal, ou em forma toróide, um elemento geométrico tal qual uma câmara de pneu cheia. Uma patente de CVT toroidal foi obtida por Adiel Dodge nos Estados Unidos em 1935, mas também nunca conseguiu escala industrial. O maior problema é que esta CVT utiliza discos metálicos que se tocam, como engrenagens sem dentes, e o atrito gerado acaba por destruí-las.

Nos anos 70, com a crise do petróleo, o governo dos Estados Unidos estimulou o desenvolvimento de câmbios CVT para reduzir o consumo de combustível. A General Motors tentou criar uma CVT semitoroidal – metade de um toróide –, mas desistiu. Parecia impossível pois o atrito metal-metal sempre acabava por destruir a peça.

Enquanto isso, no Japão, um engenheiro da NSK, fabricante de rolamentos, viu o relatório da GM a respeito e topou o desafio. Ele era Hisashi Machida. A princípio não foi levado a sério pelos superiores, mas recebeu autorização para iniciar os estudos.

Ele montou um câmbio CVT semitoroidal em 1982, baseado em modelo aplicado pela GM, e logo descobriu que o problema maior era o óleo, que não lubrificava suficientemente as partes metálicas. Em teste com um pequeno sedã o câmbio travou após andar 1 mil quilômetros em ambiente desértico – o óleo perdeu a função lubrificante sob o calor.

Machida descobriu que precisava de um tipo de óleo muito especial, que suportasse a pressão sob quaisquer condições e com capacidade lubrificante muito superior a um óleo de câmbio, ou motor, comum. O problema era que tal óleo… não existia.

O abacaxi caiu então no colo da Idemitsu Kosan, petrolífera japonesa. Após quatro anos de muito queima-cuca encontrou-se, finalmente, a solução: um novo tipo de óleo foi produzido, com a incrível capacidade de se semi-solidificar sob pressão. Ou seja: o óleo, além de proteger os discos de metal, funcionava quase que como milhares de micro-engrenagens, ajudando em muito o funcionamento desse tipo de CVT.

Festa! Finalmente o câmbio revolucionário entraria em produção. Após muitos testes o resultado foi além de animador. E, para ajudar ainda mais, em 1990 a NSK fez acordo com a Nissan para investimento no projeto – em troca os veículos da marca seriam os primeiros a contar com a CVT toroidal.

Mas havia uma condição: a Nissan queria a CVT para aplicação em sedãs grandes, com motores 3 litros ou acima. Não parecia problema, pois os testes em motores menores foram bem-sucedidos. Mas logo no início da aplicação em motores Nissan 3.0… decepção. Inexplicavelmente os discos semitoroidais de aço simplesmente quebravam exatamente ao meio após algumas horas na bancada de testes. Não havia razão para aquilo, pois o óleo lubrificava perfeitamente as partes. E agora?

Após centenas de análises Machida descobriu, com o uso de microscópio de elétrons, que o culpado era o próprio disco de aço que se partia. Micro-impurezas no metal, algo como dois centésimos de milímetro, funcionavam como nanotrincas, que aos poucos cresciam e, após certo tempo, com o aumento do torque e da pressão, rachavam o disco ao meio. Era preciso que os discos fossem produzidos com um aço puro, puríssimo, sem micro-impurezas. Só que este tipo de aço… não existia.

A encrenca ficou então a cargo da Sanyo Special Steel, também japonesa. E tome mais cinco anos de estudo, faz-de-lá-tenta-daqui até que, finalmente, conseguiu-se obter aquele que, então, era o aço mais puro do mundo – sem as malditas micro-impurezas. A CVT toroidal foi montada e funcionou perfeitamente. Viva Machida!

Em 1996 começaram os primeiros testes práticos em veículos Nissan. Dá-lhe 40 mil quilômetros rodados e, de repente, um CVT quebrou. Depois outro, mais outros. Desmontados, descobriu-se que as pequenas esferas que faziam contato com os discos estavam destruídas. Mas como, se o óleo e o aço eram perfeitos? Centenas de análises depois a bomba: o tal óleo especial desenvolvido anteriormente, em determinadas circunstâncias, inexplicavelmente atacava e destruía o rolamento.

Ou seja: aquele óleo não servia. Justamente o óleo que resolveu o primeiro problema. Isso significava que todo o trabalho voltara, dezoito anos depois, à estaca zero. Pobre Machida!
Foram mais três anos até entender que alguns aditivos daquele óleo continham malvados polisulfidos que atacavam o aço do rolamento. Substituídos e renovado o óleo o problema, finalmente, acabou.

E assim, finalmente, em 1999, os primeiros automóveis com transmissão CVT semitoroidal do mundo chegaram ao mercado japonês: eram os sedãs Nissan Cedric e Gloria, de tração traseira e motor 3.0. O duro trabalho de 21 anos fora, finalmente, realizado. A caixa de câmbio foi batizada comercialmente como Extroid CVT, e era produzida pela Jacto, a divisão de transmissões da Nissan.

Segundo a montadora a Extroid pos­sibilitava dirigibilidade muito su­perior, menos ruído e economizava 10% de combustível frente a um câmbio auto­mático convencional. Além disso per­mi­tia o uso de seis ou oito marchas virtuais, para mudança manual do motorista – como nos Tiptronic. A Extroid viveu sua glória em 2003, quando foi utilizada no Nissan Skyline V35 GT-8, de motor V6 3.5 litros de 298 cv e oito marchas virtuais, com trocas por borboletas atrás do volante.

Quatro fatos, entretanto, atropelaram o uso da Extroid em outros veículos: seu alto custo, a descoberta de que o óleo – sempre ele! – não funcionava bem em temperaturas muito abaixo de zero, como em regiões dos Estados Unidos, a tendência de downsizing de motores e o avanço no desenvolvimento paralelo da CVT tradicional, com polias e correia em V.

O último item foi o mais significativo na derrocada da Extroid: a indústria aeronáutica e a Nasa desenvolveram correias com dentes de aço, que agüentam qualquer torque e servem feito luva em CVTs com polias.

Assim a Nissan lançou seus novos Sentra e Murano com CVT, sim, mas… de sistema por polias e correia, nomea­da Xtronic, ao invés da semitoroidal Extroid. O mesmo ocorreu quando no Japão a Nissan substituiu o Cedric e o Gloria a um tempo só pelo Fuga.

Oficialmente a Nissan diz que a Extroid é mais adequada a veículos com tração traseira e motores grandes, acima de 3.0, que operam em regiões pouco frias. Como em um setor automotivo global isso é um exagero de restrições, não houve possibilidade de a Extroid ser aplicada em outros Nissan ou mesmo modelos de sua parceira Renault, como era o plano inicial. A Extroid foi encostada na prateleira.

Hoje Machida é vice-presidente executivo da NSK e responsável pelo NSK Global Technology Center, centro tecnológico da matriz. Esteve no Brasil em fevereiro de 2008 para a inauguração de centro tecnológico da unidade brasileira em Suzano, SP.

Naturalmente que ele não abandonou a CVT toroidal, quase que uma obra de vida. Ainda tenta aprimorá-la para que este não seja o fim da dura história, mas apenas mais um capítulo. Para quem já tentou tanto, mais de 20 anos, não parece difícil que em breve consiga… =)

11 Respostas to “20 anos depois, o câmbio ficou pronto!”

  1. Alimobil 8 de janeiro de 2011 às 22:29 #

    Muito interessante!

  2. leandro 8 de janeiro de 2011 às 22:38 #

    interessante

  3. Jefferson 9 de janeiro de 2011 às 01:42 #

    Não só interessante mas também muito bonita a história exemplo de persistência e inovação, mais uma vez parabéns ao blog por nos mostrar essa história, nunca tinha lido em nenhum lugar.

  4. ingo 9 de janeiro de 2011 às 07:35 #

    maldito óleo!

  5. vinicius meirelles 9 de janeiro de 2011 às 11:12 #

    pensei que fosse o cambio do fusca orfão que tinha sido encontrado pelo dono e recuperado

  6. Nicolas 9 de janeiro de 2011 às 18:14 #

    Muito bonita a história,mostra que com dedicação e perseverança se conquistam os nossos objetivos!Só para constar,no pico da 2°GM o mestre Ferdinand Porsche desenvolveu alguns projetos para os Fuscas usarem câmbios CVT,mas logo fora abandonada a ideia.

  7. Fernando Rodrigues 9 de janeiro de 2011 às 18:45 #

    Legal.

  8. Alexandre F 2 de fevereiro de 2011 às 18:57 #

    Muito bacana, lembro de ter visto esse documentário na TV Cultura há uns anos atrás.

  9. Ricardo de Sena 2 de janeiro de 2013 às 15:32 #

    Vi hoje na Cultura e leio aqui com mais detalhes, obrigado.

  10. Marcelo 8 de julho de 2013 às 09:44 #

    Tomara que ele consiga resolver essa questão do óleo no frio tb… carro com CVT é muito bom de dirigir.

  11. Andre 22 de março de 2014 às 09:36 #

    Com a gigantesca demanda por automoveis em diversos paises de clima tropical como o nosso, nao tem como viabilizar esta tecnologia?

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