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O pai bastardo do Volt

19 nov

A General Motors está focando todas as atenções no Volt, veículo híbrido de alma elétrica que será vendido a partir de 2011. Para seus principais executivos o Volt é o futuro da empresa e também dos automóveis, para o qual todos os esforços estão voltados. Mas há pouco tempo a própria GM produziu e comercializou, nos Estados Unidos, um carro elétrico muito semelhante ao Volt: o EV1. De 1996 a 1999 foram fabricadas 1.117 unidades.

Deu-se pouca atenção ao término da produção do EV1 no fim do século 20 – eram outros tempos: gasolina barata, não existia 11 de setembro nem guerra no Iraque e eram poucos os dizeres de aquecimento global e/ou necessidade de veículos não-poluentes. Apenas um pequeno grupo de usuários do EV1 protestou à época contra o fim de sua produção, porém com pouca repercussão.

Mas a coisa mudou em 2006, quando preço dos combustíveis, emissões e questões ambientais entravam na pauta do dia. Um documentário norte-americano chamado Quem Matou o Carro Elétrico?, Who Killed the Electrical Car? no original em inglês, estreou nos cinemas e acendeu tremenda fogueira sobre o fim do EV1.

O filme mostra principalmente as ações e argumentos dos ativistas pró-EV1 para evitar o fim da produção e a destruição do modelo em meio a uma complicada trama, bem como declarações de representantes do governo, executivos do setor automotivo, engenheiros e atores hollywoodianos como Mel Gibson e Tom Hanks.

De acordo com o filme uma conspiração formada por montadoras e com­panhias petrolíferas nos Estados Unidos – aliada ao apoio dos governos federal e da Califórnia e à conivência dos consumidores – matou o EV1. Mas quem assiste ao documentário chega aos créditos com a clara impressão de que a culpada, mesmo, seria a GM.

A princípio a montadora ignorou o filme, mas premiações em festivais de cinema lhe deram fôlego e público.

Independente de suas conclusões serem verdadeiras ou não iniciaram forte movimento boca-a-boca que foi parar em jornais, sites e revistas e obrigou a GM a dar uma resposta. A primeira veio de forma modesta, via blog da GM ainda em 2006: o relações públicas Dave Barthmuss escreveu o post Quem Ignorou os Fatos sobre o Carro Elétrico?, mas a defesa foi pouco eficaz.

A coisa chegou em 2008 a tal ponto que o próprio website da Chevrolet, na página em que se apresentava o Volt, www.chevrolet.com/electriccar, trazia em destaque uma curiosa chamada: “Mas vocês não são os caras que mataram o carro elétrico?”. Ao clique surgia resposta de Jill Banaszynski, gerente de programas de veículos elétricos da GM: “Nós não matamos o carro elétrico. A tecnologia de veículos elétricos está muito longe da morte”.

Ciente de que a relação da morte do EV1 com o nascimento do Volt estava começando a se complicar a GM partiu para saída honrosa: todos os executivos na matriz, a começar pelo vice-chairman Bob Lutz, já tinham resposta na ponta da língua para qualquer questionamento sobre o falecido elétrico. Afirmavam que o Volt  seria produzido justamente pela tecnologia já desenvolvida no EV1 – e que este fracassou por pouca demanda.

Esta resposta, entretanto, causa ira nos ativistas pró-EV1. Segundo a GM apenas oitocentos EV1 encontraram interessados em quatro anos no mercado, mas a montadora é acusada de forçar este baixo interesse com pouco investimento em marketing e criação de barreiras técnicas aos potenciais clientes.

Isso porque a comissão de recursos do ar da Califórnia aprovou, em 1990, um decreto criando o programa ZEV, Zero Emission Vehicle, que estabelecia prazos e porcentuais obrigatórios de fabricação de veículos sem emissão de poluentes para venda ali: 2% das vendas em 1998 e 10% em 2003. Em 1996 a exigência dos 2% em 1998 foi retirada mas manteve-se a meta para 2003.

Entretanto, em 1998, as montadoras alegaram que havia pouca capacidade técnica e interesse do mercado para atingir o objetivo de 2003. O CARB, Califórnia Air Resources Board, fechou então um acordo onde estabelecia que o volume de ZEVs seria produzido pelas montadoras de acordo com a demanda do mercado. O documentário acusa a GM, então, de reduzir ao máximo essa demanda de forma proposital.

Lutz rebate a acusação afirmando que a GM tentou ao máximo colocar os EV1 no mercado, mas o baixo preço da gasolina na época associado a particularidades do modelo desinteressaram os consumidores. E que a GM gastou US$ 1 bilhão em seu desenvolvimento, dinheiro nunca recuperado.

A primeira geração do EV1 foi apresentada no Salão de Detroit de 1996 sob a marca Saturn. Foi oferecido apenas na Califórnia e no Arizona.

O modelo trazia motor elétrico equivalente a um gasolina de 137 cv, carregado por baterias chumbo-ácidas. Possuía autonomia de 90 a 150 quilômetros, dependendo do uso. Seu desempenho de 0 a 100 km/h era próximo a 9 segundos, com velocidade máxima limitada eletronicamente a 130 km/h. Carregava somente motorista e passageiro. Trazia de série trio elétrico, ar-condicionado, CD player, ABS, controle de tração e air bags dianteiros, todos de funcionamento 100% elétrico. Possuía freios que geravam energia para as baterias e não emitia poluentes – nem precisava ir ao posto de combustíveis.

Como comparação o Volt carrega quatro pessoas, faz 0 a 100 km/h nos mesmos 9 segundos, o motor elétrico equivale a 150 cv e possui autonomia de 64 quilômetros só na eletricidade. Com o acionamento do motor a combustão que ajuda a carregar as baterias de íon-lítio a autonomia vai a 480 quilômetros. A velocidade máxima é de 160 km/h.

Cada usuário do EV1 possuía em sua garagem uma estação de recarga de 220V. Para carregar a bateria de zero a 100% eram necessárias cinco horas. Havia ainda um carregador portátil 110V no porta-malas, para conexão em uma tomada comum, que levava treze horas para atingir carga completa. E cerca de quinhentas estações na Califórnia para recarga, instaladas em supermercados e shoppings centers.

No caso do Volt, segundo a GM, basta ligá-lo a tomada comum. Uma 220V precisa de três horas para carregar as baterias quando vazias, e uma 110V oito.

A segunda geração do EV1, apresentada em 1998, trouxe novas baterias de níquel, com maior capacidade – elevaram a autonomia para 256 quilômetros.

O cliente não podia comprar um EV1 diretamente, ainda que seu preço fosse estipulado em cerca de US$ 34 mil dólares. Só era possível fazer um leasing, com custo de cerca de US$ 400 a US$ 600 ao mês, mais US$ 50 ao mês para o carregador doméstico.

Ainda em 1998 a GM anunciou a chegada de uma nova geração de carregadores para o EV1, que em 20 minutos carregavam completamente as baterias quando totalmente vazias. Com 40% da carga o tempo necessário era de 10 minutos. Entretanto, tais carregadores nunca chegaram ao mercado.

E em 2000 um novo movimento ocorreu – que para os ativistas e documentaristas é prova da associação montadoras-companhias de petróleo para matar o carro elétrico: a GM vendeu sua participação na GM Ovonic, produtora de baterias de níquel para veículos, à Texaco – a Ovonic produzia a bateria do EV1. Para os ativistas foi como entregar as galinhas para o lobo tomar conta, mas para a GM maneira de concentrar-se na produção de veículos e deixar outra empresa desenvolver a tecnologia e baixar seus custos. Para a Texaco, forma de preparar-se para o futuro.

Seis dias depois da assinatura do acordo a Texaco foi vendida à Chevron.

Apesar de interromper a produção do EV1 em 1999 – mesmo ano em que adquiriu a Hummer – a GM encerrou oficialmente o programa apenas em 2003, quando retomou os carros cedidos via leasing. Segundo a montadora os carros não poderiam ser vendidos pois não havia como garantir peças sobressalentes e assistência técnica.

Os usuários formaram, então, uma associação que ofereceu à GM US$ 1,9 milhão por 78 unidades do EV1 sem obrigação de assistência técnica, alegando que o EV1 não precisa de manutenção pois não requer troca de óleo, velas, filtros, embreagem etc.

A oferta não foi aceita.

Como protesto a associação promoveu em 2003 um funeral do EV1, utilizando as últimas unidades restantes nas mãos dos consumidores. Um dos participantes era Chris Paine, diretor de cinema, que gravou o evento – dando assim origem ao documentário.

Os ativistas também fizeram vigília em frente a uma unidade GM onde os EV1 foram estocados, na iminência de sua destruição via compactador – que, de fato, ocorreu em dezembro de 2003.

Restaram hoje cerca de quarenta unidades do EV1 espalhadas por museus automotivos e universidades nos Estados Unidos – a unidade número 1 ainda pertence à GM. Guardam consigo a glória de serem os primeiros veículos modernos 100% elétricos à disposição do mercado no mundo. E, controvérsias históricas à parte, é provável que guardem hoje seus últimos ampéres para saudar o Volt, nem que seja com um pequeno toque de buzina ou lampejar de faróis, quando este fizer o mesmo caminho em 2011.

Como quem diz: bem-vindo ao mundo, meu filho. Aqui nada é simples ou fácil. Está preparado?